Homem das artes, da cultura e da política cubana
Zezé Sack e Rodolfo Athayde

"Discordamos da pena de morte, mas as situações concretas exigem atitudes indesejáveis"

Sérgio Corrieri é presidente do Instituto Cubano de Amizade com os Povos (ICAP), um homem determinado nas relações internacionais de Cuba. Ele veio recentemente ao Brasil, por ocasião da XI Convenção Nacional de Solidariedade a Cuba, realizada em Brasília, mês passado. Nos dois dias em que esteve no Rio de Janeiro, com uma agenda pra lá de concorrida - palestra na Uerj, encontros com a Associação José Martí, com o Centro Cultural Che Guevara e um café da manhã com Nelson Rodrigues filho, para fechar projeto onde inclui a criação da Casa do Brasil em Cuba - OPASQUIM21 correu por fora e conseguiu vinte minutos deste cidadão atarefado, que consegue tempo para ser, antes de tudo, elegante e bem-humorado. Ex-ator, 62 anos, pai de um desenhista e já integrado à gíria carioca, com casamento desfeito, disse que no momento está "só ficando".

O sobrenome Corrieri é Italiano. O avô migrou para Nova York no inicio do século XX, não gostou de lá e foi pra Cuba, onde conheceu a avó, e assim começou a família. Filho de operário, o pai trabalhava nas manufaturas de charutos e em tempos difíceis se transformava em pescador para ganhar uns trocados. Sérgio nasceu num pequeno povoado, chamado Jaimanitas, a 25 quilômetros de Havana.

O senhor é um ator reconhecido, como começou sua carreira?
- Minha carreira foi mais rica no teatro que no cinema, só que o teatro fica na memória e o cinema fica no celulóide. Sempre preferi o teatro ao cinema. Formei-me como ator e diretor de teatro. Logicamente, gostava do cinema que, quando surgiu em Cuba fiquei interessado. Entre as primeiras leis da Revolução, estava a criação do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), o que aconteceu em março de 1959. Comecei de imediato a trabalhar no cinema, mas sempre que tive escolha, fiquei com o teatro.

Quais foram os momentos mais importantes para o cinema e o teatro nesta época?
- Em cuba houve duas épocas definidas. Uma, no começo da Revolução. Nesses primeiros anos, foram criados vários grupos de teatro. Os atores finalmente podiam viver, ter um salário digno e exercer sua profissão. Penso que se resgatou a dignidade da profissão de ator, pois antes da Revolução fazer teatro em Cuba era um suicídio do ponto de vista econômico, você tinha de pagar tudo do próprio bolso.

Fale sobre o Teatro Estúdio.
- Colaborei com a criação do grupo Teatro Estúdio, do qual fui um dos fundadores, grupo que ainda existe e considero a matriz do teatro moderno em Cuba. Em 1968, já estava com outras inquietações artísticas, políticas, e sentia insatisfação, uma saturação no que estava fazendo naquele momento. Aí surgiu a idéia do grupo Teatro Escambray, muito sui-géneris, pois era composto por atores de Havana, já consagrados. Eu, por exemplo, acabava de fazer Memórias do Subdesenvolvimento, um filme de muito sucesso, que com o tempo viraria um dos filmes mais importante da cinematografia cubana. A partir desse filme, recebi muitas proposta de trabalho dentro e fora de Cuba. O Teatro Escambray (O Escambray é uma região de serras isoladas no meio da Ilha) era uma obsessão, uma aventura, exigia uma pesquisa social prévia e um convívio com o público ao qual queríamos atingir. Era um teatro vivo, em transformação permanente, muito diferente do que eu fazia em Havana, fiquei totalmente mergulhado nesse trabalho até 1985, foram quase 18 anos de trabalho.

Que outros filmes você fez?
- O primeiro filme que fiz se chamava Cuba 58. Eram três contos, atuei em um deles. Filmado em final de 1959, começo de 1960. Dirigido por um diretor espanhol que morava no México, José Miguel García Ascott.

O mais conhecido é mesmo Memórias do Subdesenvolvimento. Quais são as suas lembranças e o que significou na sua carreira?
- Titón (Tomás Gutierrez Aléa, diretor de Morango e Chocolate e Guantanamera) era um grande admirador do teatro, freqüentava o grupo Teatro Estúdio, participava dos ensaios, estava sempre perto de nós . No final de 1967 já ele tinha a idéia de fazer um longa e trabalhava no roteiro, em parceria com o escritor Edmundo. Ele me propôs fazer o papel principal, mas tinha um inconveniente, o personagem devia ter uns 38 anos, devia ser um homem maduro e eu não era nenhuma das duas coisas, tinha apenas 27 anos, e a gente discutia muito o modo de interpretar o protagonista. Tinha minhas dúvidas e eles ficaram alertados. Na verdade, adorei o roteiro, estava muito animado para fazer o filme.

Memórias do Subdesenvolvimento tem como personagem central um homem intelectual, da classe média alta com seus problemas existenciais e todas as contradições dos primeiros anos da Revolução. E é o fio condutor do filme.

É um filme muito modernaopara a época em que foi feito, não?
- O filme tem uma linguagem cinematográfica verdadeiramente nova para a época, parece que foi feito ontem. Mistura, com total liberdade, estilos que, apesar de parecerem contraditórios – como ficção, documentário, imagens de arquivo, literatura e desenho animado – conseguem juntos um resultado coerente. Uma câmera nas mãos e acho que graças a essa linguagem, o conteúdo se revela em toda a sua profundidade. Acontece num tempo e numa situação concreta, com os problemas e os mecanismos que existiam. A consolidação das idéias revolucionarias, a aplicação das primeira leis, das quais este homem é uma vítima. Ele é dono de vários prédios de apartamento, que são expropriados pelo governo, e vive dos aluguéis e da renda da indenização. É ainda jovem, tem uma mulher burguesa, é um homem inteligente e vive em conflito com a falsidade dos valores burgueses. É profundamente crítico, reconhece o novo que a Revolução oferece. Embora considere que os protagonista da Revolução são pessoas de menor nível cultural e considere certos costumes desagradáveis, tem consciência de que o que está acontecendo é o futuro e deve se juntar a ele, mesmo que para isso tenha de pagar um preço.

Você também fez importantes papéis na televisão. Que pode dizer sobre isto?
- Foi no ano 1985. Eu fiz um seriado que teve grande repercussão e aceitação do público, se chamava En silencio ha tenido que ser. Eu já tinha trabalhado muito em teatro e cinema, mas a experiencia do seriado ultrapassou minhas expectativas. Meu personagem, o David, era um agente da segurança do estado cubano, que ficava infiltrado na CIA durante muitos anos e lutava para evitar as ações terroristas da contrarevolução nos Estados Unidos. O personagem é ficção, mas está baseado na história de muitos agente cubanos que viveram essa experiência.

Como se deu a virada para a política?
- A televisão foi muito importante, valorizei muito o papel e daí veio uma proposta tentadora, de dirigir a Tv cubana. Aceitei, passei dois anos nessa função complexa e gratificante. Em 1987 foi criado o Departamento de Cultura do Comitê Central do Partido. fui convidado para dirigi-lo. Era uma velha aspiração dos artistas cubanos. Assumi essa responsabilidade por quatro anos. No final dos anos 90, no meio da crise de desintegração do sistema socialista, o fim da União Soviética e o começo da pior crise econômica que Cuba passou desde a Revolução, morre repentinamente o companheiro René Rodriguez Cruz, que era diretor do Instituto Cubano de Amizade com os Povos, ICAP, e fui chamado para assumir essa instituição. Para mim, foi uma difícil escolha, porque me afastava do meio cultural para me dedicar de cabeça à política de relações internacionais.

Como funciona o ICAP?
- O instituto é uma organização não governamental, independente, não é um organismo da administração central do estado, e eu não tenho cargo ministerial, nem uma representação oficial como os diplomatas ou ministros. Lembro que alguém definiu o ICAP como um ministério de relações exteriores a nível popular, que tem mais a ver com a relação das organizações populares e independentes de outros países. Acontece que nesses anos difíceis essa função passou a ser muito importante, por causa da necessidade de desenvolver as relações de amizade e solidariedade com Cuba. Pensei apenas que ia cumprir uma função e já estou há treze anos no ICAP. É um trabalho harmônico que já me trouxe gratas experiências e momentos emocionantes. A partir dele, consegui imaginar como seria o mundo se as pessoas fossem pautados no seu comportamento, pelos valores humanos.

A solidariedade não é profissional, é um ato voluntário. Não há nenhuma associação que seja bancada por verbas estatais, e é feita tirando seu tempo de ócio. Partimos do critério de que a amizade não é paga, a solidariedade não se financia. Na Convenção de Solidariedade a Cuba, que fizemos recentemente em Brasília, houve pessoas que viajaram 36 horas, de lugares distantes do Brasil, para participar do encontro por que entendem que ser solidários com Cuba, é ser om eles mesmos e com o futuro do mundo.

E como é praticada essa solidariedade com Cuba?
- O ICAP tem seus princípios para este trabalho, o movimento deve ser totalmente livre e espontâneo. Ninguém é dono da solidariedade com Cuba, grupo, partido político, não deve impor condições para fazê-lo. Todos devem ter um espaço e uma atenção da nossa parte. Os grupos são criados com um objetivo definido e não para intervir nos assuntos internos de cada país, nesse ponto, somo muito cuidadosos. Não viemos aqui para dar palpites sobre os assuntos internos do Brasil, nosso objetivo é estreitar os laços de amizade entre os dois povos e intercambiar o conhecimento das nossas realidades. Nesses princípios é baseado o nosso trabalho.

Como ficou para o ICAP, que se relaciona com vários países, explicar as atuais condenações e penas de morte aplicadas recentemente pelo governo cubano?
- Era previsto que essas decisões teriam uma repercussão negativa e um alto custo político. A pena de morte é um assunto muito delicado, íntimo e é muito pessoal a opinião sobre isso. Em muitos países, especialmente da América latina, estava associada às ditaduras militares e foi abolida pela própria posição das esquerdas, foi uma conquista progressista, revolucionaria. No nosso trabalho com a solidariedade, recebemos muitas perguntas e preocupações dos nossos simpatizantes, que achamos lógicas e normais, não aspiramos que todos estejam de acordo com nossas decisões, mas, que entendam as razões que levaram a tomar tão difíceis e delicadas medidas, num momento em que está em jogo algo muito valioso para nós, que é a nossa própria soberania, existe a possibilidade real de uma ameaça militar sobre Cuba, considerando a política atual do governo dos Estados Unidos. Estávamos a beira de uma crise migratória em grande escala, alimentada pelos Estados Unidos, o que daria a eles uma razão para dizer que essa situação atentava contra a segurança nacional deles e de essa forma justificaria uma invasão militar. No plano filosófico, em Cuba, discordamos da pena de morte, mas as situações concretas exigem atitudes indesejáveis até para nós mesmos. Tomara que Cuba tenha condições de abolir a pena de morte como instrumento legal em breve tempo.

Depois de toda essa experiência, se aparecesse um novo convite para voltar à vida artística, o senhor aceitaria?
- Com o maior prazer eu voltaria a atuar.